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A Controvérsia da OGL

Nos últimos dias, a comunidade de RPG parece ter sido implodida com o aparente vazamento do texto completo da nova OGL (inicialmente chamada de versão 1.1 e, posteriormente, de 2.0), que estava em desenvolvimento pela Wizards of the Coast, parte do conglomerado Hasbro. Embora a notícia já seja um pouco velha, eu resolvi, conscientemente, esperar um pouco antes de noticiar, até para ouvir mais informações de pessoas que entendem bem mais disto do que eu. Mas finalmente chegou a hora de falar um pouco sobre tudo o que eu descobri ao longo da semana.

Mas para poder falar um pouco sobre a controvérsia da nova OGL, acho que temos que começar do princípio…

O que é uma OGL?

OGL é a sigla de Open Game License, ou seja, uma licença aberta de jogo em tradução literal. Mas o que isto quer dizer? Bom, uma licença aberta é uma forma de permitir que as pessoas usem algo que estaria sujeito a copyright sem ter de solicitar permissão, desde que cumpram as regras da versão da licença aberta utilizada.

A licença aberta mais comum hoje em dia é a Creative Commons, na qual as pessoas podem deixar sua arte, em praticamente qualquer forma, livre para uso desde que seja atribuída (de forma bem simples, a atribuição é informar quem é o autor original do trabalho utilizado, embora algumas versões também exijam que você informe também a exata versão da licença utilizada, ou citar que não é para fins comerciais e assim por diante).

Por exemplo, a maioria esmagadora de músicas que uso nos vídeos do meu canal, foram licenciados sob uma versão da CC, e por isto eles sempre incluem um bloco de atribuição na descrição informando a autoria das músicas e onde você pode encontra-las.

A OGL que estamos falando, em sua versão 1.0a, foi uma criação da Wizards of the Coast em 2000, dando o aval para que criadores do mundo inteiro utilizassem seu sistema de Dungeons & Dragons em troca de atribuição, o que gerou diversos filhos, como Pathfinder, Critical Role e praticamente todos os sistemas D20.

Por que uma OGL?

O negócio é que, segundo a legislação americana, um RPG caminha em uma linha tênue entre o que pode ou não pode ser copyright, já que regras, sistemas e métodos não são, por regra, sujeitos a copyright, mas sim, apenas a parte ficcional e criativa do jogo.

Mas então, se o jogo em si não é sujeito, em sua maioria, a copyright, para que uma OGL?

Na prática, para nada. Se você simplesmente pegasse o esquema do jogo e criasse o seu, poderia até mesmo dizer que seu sistema é compatível com D&D. Só que o pulo do gato foi que, com a OGL, ela pode limitar o que os criadores podem e não podem utilizar, o que, na época de seu lançamento, parecia uma ótima ideia, já que você não estaria sujeito a, inadvertidamente, usar uma parte sujeita a copyright e poder ser processado pela Wizards.

Nova OGL?

Convenhamos, a OGL original tem 22 anos. Ela foi escrita em uma época em que não tinhamos smartphones, nem existia a ideia de streaming e a internet das coisas era coisa de ficção científica. De lá para cá o mundo mudou muito e era uma questão de tempo até uma nova versão da OGL ser feita, adequando-se ao mundo de hoje.

Além disto, com um filme baseado em D&D e provavelmente um seriado a caminho, a Wizards quer manter sua galinha de ovos de ouro só para ela.

Até aí, tudo certo e correto…. o problema veio nos pontos não tão bacanas em um rascunho da nova OGL que vazou há pouco mais de uma semana atrás.

A Nova OGL

O primeiro grande problema é que a nova OGL irá simplesmente revogar a OGL antiga. Embora muita gente fale que isto não é possível, devido a um certo palavreado presente na original, a maioria dos entendidos no “juridiques” dizem que sim, é perfeitamente legal e possível, principalmente se o que você publicou referencia ou cita efetivamente a OGL original (no caso, a 1.0a). A alegação é que a 1.0a é declarada “perpétua”, porém não “irrevogável”.

Isto, por si, já é uma jogada estranha para muita gente. Imagine que você assina um contrato que, como falei lá atrás, nem necessário era, e depois de 20 anos os termos do contrato são alterados sem consultar você? Na prática, é mais ou menos assim que aconteceu.

Além disto, a nova OGL, nos termos em que veio a público, impactará pesadamente empresas cujo catálogo é composto de derivados da OGL original, como a Paizo (Pathfinder), Green Ronin e Kobold Press. Em especial isto é verdade quando vemos um trecho da nova OGL, onde está citado que “A OGL foi pensada para permitir a comunidade ajudar no crescimento do D&D e expandi-lo criativamente. Não para subsidiar grandes competidores, especialmente agora, que PDF é, de longe, o meio mais comum de distribuição.

Mas o que ela tem de novo realmente?

Em primeiro lugar, a nova OGL traz um nível de receita a partir do qual você deve royalties para a Wizards of the Coast. Todos que tiverem receita acima de US$750.000 anuais devem pagar 25% de toda a receita que superar este patamar, independente da empresa estar gerando ou não lucro com isto.

Embora isto pareça um montante bem razoável, e que impactará poucos criadores, vale ressaltar novamente que estamos falando da receita, independente dos custos por trás, não de lucro. Isto quer dizer que, se você fez um produto muito bom, mas com baixo lucro, talvez você tenha até um prejuízo após pagar os royalties devidos.

Adicionalmente, ao contrário da OGL anterior, na nova versão, aparentemente tudo que for feito com base nela deverá ser registrado junto a Wizards. Eu entendo que a Wizards quer manter um certo padrão de qualidade, mas isto pode ser uma barreira de entrada bem grande para muitos projetos pequenos, que não terão estrutura robusta para esta burocracia.

Fora isto, uma cláusula permite que a licença seja alterada a qualquer momento e por qualquer motivo, simplesmente através de um aviso com 30 dias de antecedência. Esta é uma novidade de enorme impacto, já que uma parcela considerável da comunidade que publica, comenta e usa RPGs atualmente acabou sendo criada com a confiança de que a OGL original, 1.0a, poderia ser usada indefinidamente e vários utilizadores simplesmente não conseguirão sobreviver na sombra de um eventual anúncio de alteração das regras da licença.

Imagine-se com um projeto que rolou via um financiamento coletivo de sucesso. Você arrecadou US$800.000, o que faria com que você estivesse devendo royalties de US$25.000, mas não tem problema, você já tinha calculado o projeto com isto e agora vai começar a produção. Aí a Wizards te manda uma notificação dizendo que seu projeto será revogado daqui a 30 dias… E aí? o que você faz? Se joga da ponte? Você já arrecadou, pagou a taxa do site de financiamento, fechou contratos com gráficas e não pode mais publicar porque sua licença foi revogada.

Junto com isto, ainda temos o limbo do que não é impresso. A nova OGL faz questão de limitar o seu escopo a material impresso. Basicamente qualquer outra coisa, deve ser feita através de um licenciamento efetivo, o que pode inviabilizar muitos jogos, seriados, PDFs e por aí vai.

E para completar, a Wizards aparentemente ainda se reserva o direito de utilizar conteúdo criado com base na OGL nova sem pagamento de royalties para os autores originais, no melhor esquema, se eu te emprestei o sistema, o que você gerar também é meu, o que, compreensivelmente, gera a percepção de uma ameaça de roubo legalizado.

Existem muitos outros detalhes envolvidos, mas acho que dá para ter uma boa ideia. E embora eu entenda que os direitos de limpar a casa sejam da Wizards (e sua mãe, Hasbro), a forma como isto está sendo feito, parece ser simplesmente uma forma de puxar o tapete de concorrentes que ficaram poderosos demais através da OGL original.

E agora?

Muita gente tem se movimentado, criando cartas abertas e abaixo-assinados, bem como o cancelamento de assinaturas de D&D Beyond. Em certo momento, o botão de cancelamento, anteriormente vem visível no topo da página de entrada, chegou a ser movido para outra parte menos aparente e a página de cancelamento chegou a sair do ar durante a semana devido ao volume de pessoas cancelando a assinatura. Esta situação tem despertado a insegurança da Wizard sobre a nova OGL e, eventualmente, até mesmo mostrando que a Wizards e a Hasbro podem ter superestimado o grau de compromisso e adesão de seu mercado para com o D&D.

Durante a semana, a Wizards cancelou por duas vezes o anúncio da OGL e até um streaming na twitch foi cancelado pela empresa.

Enquanto isto, as demais grandes empresas que serão impactadas pela alteração tem se manifestado. Em especial a Paizo, criadora do Pathfinder, já salientou que com a implementação da segunda edição de Pathfinder, seu sistema já não depende mais da OGL 1.0a e referenciava ela ainda apenas para disponibilizar conteúdos para terceiros. Ela, junto de outras empresas, declararam que não mais usarão o selo OGL da Wizards em suas novas tiragens e novos produtos.

Adicionalmente, eles estão trabalhando em uma licença aberta agnóstica, que poderá ser usada por qualquer empresa de RPG para tornar seus sistemas realmente livres, e que não será propriedade de nenhuma empresa em específico, mas sim de uma organização sem fins lucrativos, para evitar que compras e vendas de empresas possam gerar uma alteração nela como a que estamos vendo com a OGL da Wizards.

Conclusão

A verdade é que a situação parece ainda não ter uma conclusão. Os assuntos ainda estão se desenvolvendo e muitas vozes a favor e contra tem se levantado.

Uma resposta oficial da Wizards chegou apenas após mais de uma semana via D&D Beyond (veja aqui) e, além de chegar muito tarde, ela também não sana todas as respostas, então acredito que teremos que esperar para ver como o assunto se desenrola.

Este post tem 3 comentários

  1. Luís Edvaldo

    Muito legal e instrutiva a matéria.
    Obrigado Romir pelo texto.

    1. romirplayhouse

      Obrigado por ler. Fico feliz de ter ajudado.

Comentários encerrados.